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A hermenêutica bíblica utilizada por João Paulo II na Teologia do Corpo

Autores: Francisco Deusimar Andrade Albuquerque / Daniel Barreto de Oliveira / Emanuel Nilo da Silva Aires

Conteúdo de propriedade intelectual dos autores. Publicação aqui foi realizada a partir de autorização do primeiro autor (Desuimar);

Introdução

A Teologia do Corpo é um conjunto de catequeses que São João Paulo II pronunciou de 1979 a 1984, que depois ficou conhecido como Catequeses sobre o Amor Humano, ou simplesmente Teologia do Corpo (TdC). Eleito Papa em 1978, com pouco tempo inicia esse conjunto de catequeses, que pela profundidade e extensão levam a supor que pelo menos um esboço desse projeto já estava pronto.

Seria esse composto principalmente pelo memorandum produzido pela comissão diocesana de Cracóvia para enviar como proposta para Paulo VI na composição da Humanae Vitae? (cf. SEMEN, 2006, p. 41) Não o temos como afirmar com toda certeza; porém, não seria difícil supor a correlação desses dois escritos. Ele mesmo admite esse intuito de um comentário mais amplo da doutrina contida na encíclica4 (cf. TdC 28/11/1984, 2.4).

Ademais, a temática ao redor da moral sexual já era algo que perpassava seu pensamento: já tendo publicado sua obra filosófica Amor e Responsabilidade em 1960, ao qual muitos pontos vão ser retomados na Teologia do Corpo, porém a partir de um ponto de vista teológico mais alargado.

De fato, a grande crítica que se seguiu à publicação da Humanae Vitae deixou a posição moral da Igreja um tanto quanto controversa. Para além das circunstâncias externas da revolução sexual, e do nascente uso dos contraceptivos sintéticos – exatamente na década de 60, data da publicação da Humanae Vitae; a posição interna sobre a questão não foi unânime, pelo contrário, a maioria da comissão votou a favor do uso moral de contraceptivos (cf. SALZMAN & LAWLER, 2012, p. 75-76).

É nesse sentido que é preciso compreender o juízo emitido por Paulo VI no começo da Humanae Vitae, n. 6, que “suas conclusões não poderiam ser consideradas definitivas, nem dispensar do exame pessoal do grave problema e porque se tinha aflorado alguns critérios e julgamentos que se afastam da doutrina moral do matrimônio proposto pelo Magistério perene da Igreja”. Salzman e Lawler (cf. 2012, 71-76) chegam a propor uma contraposição da Humanae Vitae, em relação à Gaudium et Spes.

Essa suposta contraposição parece-nos infundada, seja pelos motivos epistemológicos propostos pelos autores; mas principalmente pela presença atuante de Karol Wojtyla seja na redação da Gaudium et Spes, seja na formulação da Humanae Vitae, ainda que sua participação não tenha sido linear. Tal intuição integrativa entre os dois escritos são citados nas catequeses de Teologia do Corpo a partir de uma “fundamental convergência entre elas” na “valorização da dignidade do matrimônio e da família” (cf. TdC 08/04/1981, 5).

Contudo, é preciso admitir que a Humanae Vitae é um documento que não seguiu toda a intuição do Concílio. Não estamos a nos referir com relação à doutrina, ao qual a Igreja encontra-se como interprete autêntica da lei natural (cf. CIC, 2032-2034, HV, 4); mas alguns princípios elucidados pelo próprio Concílio (cf. Optatam Totius, 14. 16. 20), a saber:

  1. A coordenação cristológica da filosofia e da teologia – as poucas referências à Cristo no documento não desenvolve uma cristologia que dê sustento ao argumento moral;
  2. Consequentemente, a partir do viés cristológico, considerar um olhar antropológico;
  3. Não há um vínculo direto com a Revelação através das Sagradas Escrituras;
  4. Não transparecer um vínculo direto entre a doutrina proposta e a espiritualidade;
  5. Não há a demonstração da evolução da doutrina moral e o enlace desta na teologia patrística;
  6. Não trazem consigo uma fundamentação antropológica que torne possível revelar a vocação superior dos fieis em Cristo e sua obrigação de dar frutos na caridade;
  7. Ademais, falta ao documento um diálogo com as outras áreas do saber: psicologia, sociologia, pedagogia, etc. Quando, por outro lado, nos detemos no estudo da Teologia do Corpo e notamos que ela é exatamente uma retomada do ensino tradicional da Igreja, ou seja, a afirmação da Lei Natural; contudo, seu ensino de dá a partir das Palavras de Cristo (1) e do sentido como Cristo interpreta as sagradas Escrituras (3). Além disso, é um olhar que vincula a ética – num sentido mais abrangente e dentro dela a moral sexual – e a antropologia (2), a partir de um olhar que tome em conta a experiência fundamental do homem seja da sua situação origina (protologia), seja da marca que o pecado deixou no homem (realidade histórica), seja da sua realização definitiva (escatologia), um olhar que tenta abarcar o homem por completo, não só seu espírito, mas também seu corpo (4), com uma proposta com profundo diálogo com as demais áreas do saber (7) – pelo próprio método fenomenológico implícito nas catequeses. O mais interessante é notar que tudo isso não é proposto somente como uma doutrina, ou uma lei moral rígida; é proposto como uma reflexão, uma mudança de mentalidade, uma espiritualidade (6).

Vemos, assim, que a articulação da Teologia do Corpo não fora somente um conjunto de reflexões isoladas, mas parecem responder à algumas exigências do seu tempo, ela “nos oferece, embora de modo indireto, a confirmação da verdade da norma moral contida na Humanae vitae, prepara-nos para considerar mais a fundo os aspectos práticos e pastorais do problema no seu conjunto.” (TdC 29/081984, 6, grifo do autor).

É exatamente na esteira do Concílio, e das controvérsias com a Humanae Vitae, que é necessário ler a Teologia do Corpo, resta-nos, então saber, como o dado da Revelação torna-se evidente na hermenêutica bíblica usada por João Paulo II e se o conjunto dos textos bíblicos usados pelo Polonês servem somente para legitimar suas proposições, ou se sua integração dos textos bíblicos, no conjunto da Revelação, referidos à pessoa de Cristo tornam possível uma análise da moral sexual segundo os parâmetros exigidos pelo Concílio, análise a qual nos deteremos no presente trabalho.

O substrato bíblico da Teologia do Corpo

É necessário ter claro que o conjunto de normas morais relativos à sexualidade derivam não tanto do dado da Revelação, quanto da própria “natureza dos mesmos sujeitos que atuam” (cf. HV, 4, Catequese de 11/07/1984). Mas o que isso quer dizer precisamente à Moral Católica? Primeiramente isso se refere à universalidade da lei moral6. Ou seja, é possível o homem através da sua razão e da sua liberdade chegarem à essa conclusão; ademais, isso afirma como tal que é conforme a razão (cf. TdC 18/07/1984).

Portanto, fundado na natureza humana, pode-se supor um caráter de estabilidade quando lido seja em relação ao tempo seja em relação à cultura (cf. PH, 4-5). Portanto, mais filosófico que teológico (cf. PIMENTEL, 2015, p. 31). Por outro lado, essa verdade foi muitas vezes exposta pelo Magistério no “conjunto da doutrina revelada contida nas fontes bíblicas” (TdC 22/08/1984, 3).

Quando se tem em conta a “visão integral do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna”7 (cf. HV, 7) nota-se que a vocação sublime do homem só se desvela no mistério do Verbo Encarnado (cf. GS, 22; RH 8.10). Podemos dizer que a categoria de mistério é essencial contribuição antropológica de Karol Wojtyla. Nas palavras do próprio João Paulo II, sua análise não se trata de outra coisa senão “ler na verdade a linguagem do corpo”, como foi feito nas suas análises bíblicas, e de tal leitura, na verdade, deriva os ensinamentos contidos na Humanae Vitae (cf. TdC 08/08/1984, 6).

É exatamente nesse sentido, que a Teologia do Corpo deixa Cristo falar ao homem – “revelar o homem a si mesmo”. “[Cristo] é o verdadeiro modelo do homem e na sua pessoa revela a verdade sobre o homem no modo mais perfeito” (MERECKI, 2014, p. 15). Os conteúdos antropológicos contido na Teologia do Corpo brotam da interpretação das próprias palavras de Cristo, tanto que os três primeiros ciclos de catequeses se referem especificamente às palavras de Cristo que se referem ao princípio (protologia), à situação de pecado (historicidade) e o destino final (escatologia). Ademais, da sua interpretação das Sagradas Escrituras brota hermenêutica do Dom – também expressa de maneira lapidar em Gaudium et Spes, 24 afirmando “que o homem, única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma, não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo”, fornecendo um novo “critério de compreensão e interpretação” (cf. TdC 02/01/1980, 2).


Deste modo, João Paulo II não se usa de um conjunto de passagens bíblicas para legitimar suas prescrições morais, prescindindo de uma adequada hermenêutica, pois sua preocupação, mesmo no âmbito da moral, não é chegar a uma “receita de uso imediato”, preocupado com um conjunto de leis morais (desconexas) (cf. PIMENTEL, 2015, p. 45). Por outro viés, o que o autor tenta remontar a partir das Sagradas Escrituras é aquilo que é propriamente humano, autenticamente humano, que é acessível não só à sua razão, mas faz parte da sua experiência. Sua descrição não é desenvolvida, portanto, só do âmbito teórico ou descritivo (cf. IBIDEM, p. 48).

Assim, o que o autor procura, nos textos bíblicos, citado na Teologia do Corpo, são dados antropológicos. Por um lado, a partir da Revelação, é possível entender que a experiência histórica do homem histórico – ou seja, a experiência do aqui e agora do homem –não podem encerrar tudo aquilo que se entendem por experiência humana, pois há também duas dimensões humanas que não são acessíveis imediatamente ao homem histórico (marcado pelo pecado), ou seja, a dimensão originária e a dimensão escatológica, acessíveis só pelo dado da Revelação8.

Por outro lado, “a experiência histórica do homem não está totalmente desligada daquelas duas dimensões da sua existência” (TdC 16/12/1981, 5). Fica, assim, patente uma continuidade e uma unidade antropológica no homem “apesar do pecado” (cf. TdC 12/03/1980, 7; TdC 26/09/1979, 1). “Se tivesse havido uma ruptura total entre o homem da situação originária e o chamado ‘homem histórico’, as palavras de Cristo não passariam de uma evocação lírica, sendo injustificado querer extrair delas conclusões normativas” (PIMENTEL, 2015, p. 54).

Está suposto, então, não só a continuidade entre os estados, mas também o nexo que existe entre criação, redenção e consumação – a própria consumação escatológica é vista como “consumação e confirmação” da realidade antropológica (cf. TdC 03/02/1982, 3) – e uma constante na dignidade próprio do homem como criado, redimido e vocacionado à santificação (cf. TdC 20/10/1982, 7). O homem é chamado a isto pela palavra do Evangelho, portanto ‘de fora’, mas ao mesmo tempo é chamado também ‘de dentro’.” (TdC 29/10/1980, 5).


De igual modo, se viesse a haver uma ruptura entre a situação histórica do homem e o seu futuro escatológico, igualmente não faria sentido Cristo citar na sua discussão com os saduceus (cf. Mt 22, 30). Não se trata de reduzir, os três estados à um conteúdo antropológico, mínimo fundamental; mas levar a sério a compreensão dessa continuidade ontológica: é o mesmo ser humano!

É essa continuidade que João Paulo II afirmará na Veritatis Splendor ser a base fundamental para afirmar a imutabilidade da lei natural e, consequentemente, a “existência de normas objetivas de moralidade válidas para todos os homens do presente e do futuro, como foram já para os do passado” (VS, 53 apud PIMENTEL, 2015, p. 52). Disso, podemos tirar duas conclusões imediatas: primeiramente, a moral não é um imposição ad extrínseca ao homem – uma superestrutura social – a moral é profundamente vinculada à antropologia e, portanto, as normas morais tem enraizamentos internos à ontologia do homem; em segundo lugar, o homem não pode ser reduzido à um único aspecto da sua “história teológica”, as três dimensões são essenciais para podermos entender bem o ser humano; princípio que São João Paulo insiste que esse é o modo adequado de compreender o homem seja no passado, seja no presente, seja no futuro (cf. PIMENTEL, 2015, p. 57).


É isso que torna o autor hábil para fazer coincidir o método fenomenológico com seu método de interpretação bíblica, uma vez que supõe a experiência humana nas três dimensões teológicas do homem (origem, historicidade e escatologia); e acreditamos que essa seja sua originalidade, de tal modo que podemos falar de uma fenomenologia bíblica – fato notável no decorrer de várias de suas catequeses quando se usa de categorias próprias da fenomenologia como intencionalidade, motivação, reconhecimento, experiência (subjetiva), redução intencional, consciência, etc.

Com isso, não queremos dizer que o autor reduza às Sagradas Escrituras, ou os dados da Revelação àquilo que é acessível à experiência humana. Acreditamos exatamente o contrário: que os conteúdos da Revelação trazem consigo um profundo significado já implicitamente antropológico: ou seja, não são simplesmente “algo de fora”, mas fornece uma perspectiva nova para a formulação de uma “antropologia adequada”, que leve em consideração o homem como um todo – sem cair nos possíveis reducionismos. O método fenomenológico busca chegar à experiência mais elementar do homem, um método que pode ajudar a compreender a experiência do homem antes do pecado original (cf. MERECKI, 2014, p. 10), havendo, assim, uma relação entre revelação e experiência.

Conclusão

A partir da análise feita, a Teologia do Corpo é uma tentativa de tentar corresponder às expectativas teológicas levantadas pelos padres conciliares. Assim, a Teologia do Corpo parece-nos uma adequada interpretação da Humanae Vitae. A Teologia do Corpo, ademais, não pode ser compreendida como uma resposta fácil às questões morais – como acima supracitado –, mas deve ser vista como um desenvolvimento de uma antropologia teológica centrada na pessoa de Cristo, fundada na Revelação e apoiada na Lei Natural.

Para tanto, o presente trabalho deteve-se basicamente na legitimação do método teológico empregado na interpretação bíblica, tentando revelar seus fundamentos hermenêuticos e epistêmicos, aos quais se mostraram adequados ao tema proposto, com uma base epistêmica e hermenêutica própria e inovadora. A partir das palavras de Cristo, ele mostra um esquema de continuidade antropológica nos três “estados teológicos do homem”, o que lhe permite tentar ver nesses estados conteúdos fundamentalmente humanos, uma análise propriamente antropológica.

Essas intuições do autor só se tornaram possíveis e legítimas por beberem diretamente dos eixos temáticos propostos pelo Concílio, onde pode ser encontrado a hermenêutica do dom (cf. GS, 24) e a centralidade de Cristo para a antropologia (cf. GS, 10.22).

Cristo revela o homem ao próprio homem! Essa intuição traz uma enraíza profundamente a Teologia do Corpo. Vimos, assim, que essa revelação dada por Cristo ao homem, porém, não veio somente como um conteúdo extrínseco acrescido à uma “natureza pura”, conceito altamente controverso para a teologia contemporânea, mas encontra-se como a resposta profunda aos anseios do coração do homem.

O encontro com a Verdade que Cristo traz ao homem parece reverberar na verdade já presente no homem desde a Criação. É por isso que os conteúdos teológicos presentes nas catequeses parecem, na verdade, já recordarem o homem daquela vocação sublime que ele fora chamado desde de o dia da sua criação: sua experiência de vida – se este for sincero em analisar essas verdades interiores – parecem confirmar os conteúdos apresentados pelo querido Papa. Por outro lado, quando exposta de maneira magistral convida o coração do homem a abraçarem esta linda vocação que muitos esqueceram: o Amor!

Referências

JOÃO PAULO II. Homem e mulher o criou: catequeses sobre o amor humano. Bauru,SP: EDUSC, 2005.
LACROIX, Xavier. Corpo de Carne: as dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo: Loyola, 2009.
MERECKI, Jarsolaw. Corpo e Trascendência: a Antropologia Filosófica na Teologia do Corpo de São João Paulo II. Brasília: Edições CNBB, 2014.
PIMENTEL, João Paulo. Glorificai a Deus no Vosso Corpo: Conceitos e Perspectivas da Teologia do Corpo. Lisboa: Editorial Aster, 2015

SALZMAN, Todd A.; LAWLER, Michael G. A pessoa sexual: por uma antropologia católica renovada. São Leopoldo-RS: Ed. UNISINOS, 2012.
SEMEN, Yves. A sexualidade Segundo João Paulo II. São João do Estoril: Princípia, 2006

As notas de rodapé foram aqui omitidas. Para consultá-las, acesse o artigo na publicação original aqui.

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