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Pentecostalidade, teologia do corpo e oração

pentecostalidade

Gestos expressivos, palavras em voz alta, palmas e movimentos corporais. Se você é de ambiente católico com certeza já associou essa descrição a reuniões carismáticas ou, então, pentecostais.

É exatamente sobre isso que falaremos, só que com uma abordagem da teologia do corpo. Afinal, as orações extravagantes comuns em determinados ambientes são aceitáveis para a visão católica? O extravasamento emotivo manifesto em experiências carismáticas está de acordo com a antropologia proposta por São João Paulo II na Teologia do Corpo? Confira:

Uma descrição do fenômeno do louvor extravagante

Por louvor extravagante entende-se experiências de grande fervor espiritual comumente manifestadas em ambientes carismáticos e pentecostais, tais como gritos, pulos, palmas, choro e, até mesmo, corridas e rodopiadas.

Para fiéis de vertentes mais tradicionais, a descrição presente no parágrafo acima é chocante. No entanto, para evangélicos pentecostais clássicos, neopentecostais de igrejas contemporâneas livres e carismáticos (embora o estilo de oração carismática sofra grandes variações a depender da localidade e influências¹) experiências semelhantes fazem parte do dia a dia das reuniões e dos cultos.

A estética extravagante desses ambientes despertam certo rechaçamento aos cristãos de igrejas tradicionais, inclusive aos católicos. No Brasil, a CNBB já chegou a recomendar aos bispos que proibissem² fenômenos como a oração em línguas e o repouso no Espírito (o equivalente ao cair no Espírito dos evangélicos).

No entanto, a simples estética estranha à experiência entendida como comum à Igreja não deve ser o critério decisivo para discernir tais fenômenos. Na verdade, dois aspectos precisam ser avaliados (e é o que faremos neste artigo) para buscar um melhor entendimento:

Em primeiro lugar, deve ser avaliado as questões teológicas, ou seja, responder se, dentro da Revelação cristã, existe espaço para tais manifestações. Em segundo lugar, precisamos encarar o fenômeno sob o ponto de vista do homem. Neste ponto, a antropologia de Karol Wojtyla nos ajudará.

A partir de agora, utilizaremos a expressão pentecostalidade para referir-se às expressões extravagantes de louvor.

A pentecostalidade na história da Igreja

O movimento pentecostal moderno remonta ao início do século XX em Los Angeles, nos Estados Unidos, no fato histórico conhecido como avivamento da Rua Azusa. Já a Renovação Carismática Católica faz parte de uma série de “renovações carismáticas” que adentraram nas igrejas históricas por volta do ano de 1960.

Fenômenos de pentecostalidade, portanto, estão ligados às experiências dos moveres pentecostais do início do século passado, conforme relatou o Los Angeles Times:

As reuniões se realizam num barraco condenado na rua Azusa, e os partidários desta estranha doutrina praticam os mais fanáticos ritos, pregam as teorias mais loucas e eles mesmos funcionam num estado de louca excitação em seu zelo peculiar. Gente de cor e uns quantos brancos compõem a congregação, e a noite se torna horrorosa no bairro por causa dos uivos dos fiéis, que passam horas se balançando para frente e para trás numa exasperante atitude de oração e súplica. Eles dizem ter o “dom de línguas” e ser capazes de entender este babel³.

Mas, afinal, será que tal fenômeno é exclusivo do movimento pentecostal moderno e dos carismáticos, ou existem antecedentes na história da Igreja? De forma breve, queremos demonstrar que é possível enxergar traços de tais experiências em outras épocas do cristianismo. Para isso, o livro Sons de Milagres, de um diácono americano católico, traz abundantes relatos que comprovam a presença cotidiana de tais experiências na Igreja.

O foco deste artigo é a antropologia de São João Paulo II. Por isso, traremos aqui apenas um dos muitos relatos presentes no livro supracitado:

Santo Agostinho

O diácono Eddie Ensley resgata trechos de escritos do próprio Santo Agostinho, que narra experiências semelhantes ao cair no Espírito (ou repouso), possível dom de línguas e, inclusive, expressões livres de louvor (como acontece em reuniões pentecostais, especialmente em igrejas pentecostais clássicas, como a Congregação Cristã). Confira:

“Paulo orava cheio de fervor, suplicando por uma cura. Inesperadamente, ele cai prostrado no chão, “como se em transe”, nas palavras de Agostinho […] De acordo com Agostinho, “a igreja logo badalou com o clamor do regozijo”. Quase todos romperam em altas orações de ação de graças” […] nenhuma língua ficou em silêncio […]
Ao ver isso, a congregação irrompeu em altos e espontâneos louvores a Deus. Agostinho descreve pessoalmente o júbilo: “A exultação continuou e os louvores sem palavras a Deus foram proferidos tão altos, que meus ouvidos mal podiam suportar o barulho” ⁵

Somente neste ocorrido temos recortes muito interessantes:

  1. Em primeiro lugar, a experiência narrada foi testemunhada por Santo Agostinho, ou seja, foi a congregação quem manifestou tais experiências. Portanto, cai por terra a argumentação de alguns de que a oração em línguas seria um dom místico reservado para alguns santos;
  2. A queda do homem, narrada por Agostinho, assemelha-se ao cair no Espírito (repouso);
  3. As orações comunitárias em voz alta lembram, e muito, as assembleias carismáticas e pentecostais;
  4. “Altos e espontâneos louvores a Deus” demonstra que, ali, não tratava-se de uma ação litúrgica;
  5. “Louvores sem palavras” encaixa-se muito bem na definição de oração em línguas.

Sobre este último ponto, cabe resgatar a definição presente em uma clássica literatura carismática:

“Orar em línguas é rezar uma linguagem expressiva aconceitual […] Em resumo, quanto à sua materialidade, a oração em línguas não é algo extraordinário nem de miraculoso […] Mas enquanto é oração, isto é, um exercício de fé religiosa, atua uma efetiva ação de Deus, que não se encontra nas técnicas profanas” ⁶

Concluímos, portanto, que experiências semelhantes às pentecostais modernas ocorreram na história da Igreja, sendo possível aceitá-las teologicamente. Para aprofundar nestas questões históricas, recomendamos fortemente a leitura do livro Sons de Milagres.

Fenômenos semelhantes à pentecostalidade em outras experiências religiosas

Já no campo da antropologia, é importante investigar a presença de fenômenos semelhantes ao pentecostalismo fora do cristianismo. Investigá-los significa compreender aquilo que é propriamente humano da experiência religiosa para, a partir disso, buscar entender aquilo que é ou não aproveitável sob a ótica da Revelação.

É o que o cristianismo fez, por exemplo, com o sacerdócio. Em todas as religiões naturais há a presença de um sacerdote. Esse é um dado antropológico, uma verdadeira necessidade humana para a relação com a divindade. Por isso existem sacerdotes cristãos, pois são necessários à humanidade e, por meio da Graça, o sacerdócio é ressignificado e potencializado.

No caso da pentecostalidade, podemos encontrar fenômenos parecidos em diversas experiências religiosas. O Cardeal Suenens, em um livreto de estudos do chamado repouso no Espírito, cita a presença análoga do fenômeno em seitas orientais, bem como em tribos primitivas da África e da América Latina⁷.

A visão do homem de São João Paulo II

São João Paulo II inaugurou um novo tempo para a antropologia cristã. Por meio de seus escritos, especialmente no livro Amor e Responsabilidade, as catequeses da Teologia do Corpo e outros materiais acadêmicos, conseguiu revolucionar a visão antropológica do catolicismo, tendo por base a experiência humana (apelando inclusive para a filosofia moderna, sem desprezar a filosofia tradicional), bem como a Revelação.

Quem é o ser humano?

Para João Paulo II, o ser humano é a integração do corpo e da alma. Qualquer divisão dessas duas realidades é uma anomalia. O ser humano não é só o espírito, como afirmam falsas doutrinas e linhas filosóficas mais próximas ao platonismo. Somos uma perfeita integração.

Contra o dualismo: nossa fé é encarnada

Ainda que subjetivamente, há uma certa presença de um pretenso dualismo na mentalidade religiosa de alguns católicos. A excessiva ênfase na espiritualidade (que, na verdade, é uma falsa espiritualidade) em detrimento do corpo revela uma visão espiritualista da experiência de fé.

O corpo, em todas as suas nuances, tais como sentidos e emoções, faz parte do ser humano integral. Excluí-lo da fé é limitar o poder salvífico de Cristo, que veio para redimir o homem todo.

A fé cristã é encarnada. A nossa religião é muito mais que uma simples espiritualidade, mas é a Revelação de um Deus que rompe os limites lógicos e toca nossa carne para salvá-la. O cristianismo não é sobre destruir o corpo, mas sim de resgatar sua dignidade.

O corpo enquanto sacramento da pessoa

“O corpo revela a pessoa”⁸. Essa afirmativa é reflexo da construção do pensamento antropológico de São João Paulo II. Portanto, o corpo é a via por meio do qual a pessoa integral se expressa. No que diz respeito à espiritualidade, é natural que movimentos interiores reflitam exteriormente.

Nas palavras de João Paulo, o corpo torna visível o invisível:

O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele. ⁹

Em uma expressão cara à Teologia do Corpo, não temos um corpo, somos o nosso corpo. Naturalmente, nossa relação com Deus não pode excluí-lo. Afinal, somos chamados à uma espiritualidade encarnada e a um corpo espiritualizado.

Conclusão

Concluímos que a pentecostalidade é uma expressão humana de experiências de fervor religioso. Não há razão para interpretá-la como um erro, pelo contrário, mitigá-la significa impedir uma experiência religiosa autenticamente humana. Tal mentalidade muitas vezes está presente nos críticos mais ferrenhos da extravagância pentecostal e revela uma certa visão espiritualista da espiritualidade cristã. 

Sendo um dado antropológico, deve ser aproveitada na medida em que colabora para a vida na Graça. Portanto, o critério de discernimento essencial são os frutos apresentados na vida dos crentes.

Entre os pentecostais, é notável o surgimento de uma devoção pela Sagrada Escritura, abandono de vícios, mudança de vida e profunda vida de oração. Entre os carismáticos, além daqueles frutos observados nos pentecostais, é perceptível o crescimento da frequência aos sacramentos, devoção à Virgem Maria, amor ao Papa e ortodoxia nas questões de fé e moral.

Não obstante os frutos e a confirmação antropológica, são inexistentes as razões teológicas que desclassifiquem a pentecostalidade. Logo, ela é totalmente adequada à visão cristã, embora não faça parte da essência de fé e doutrinas necessárias para a salvação.

Apêndice: um convite à uma relação integral com Deus

Somos seres integrais. Buscar um relacionamento com Deus a partir de realidades e aspectos particulares da nossa existência representa perder grande parte do tesouro que o Senhor deseja dar-nos no secreto da oração.

Desprendamo-nos, portanto, de todo o dualismo ou espiritualismo ainda presentes em nossa espiritualidade. Busquemos o Senhor com tudo o que somos, entregando-nos totalmente a Ele, de corpo, alma e espírito.

Que o Totus Tuus de São João Paulo II possa nos auxiliar nesse caminho.


¹ Isso fica evidente, por exemplo, ao comparar a forma de oração presente nos grupos de oração do movimento eclesial (RCC) e em outras expressões carismáticas, como em novas comunidades (Colo de Deus, Missão Rio de Deus, etc.)

² https://www.veritatis.com.br/orientacoes-pastorais-sobre-a-renovacao-carismatica-catolica-rcc/. (Acesso em 24 de fevereiro de 2021).

³ Hayford, Jack W.; Moore, S. David (2006), The Charismatic Century: The Enduring Impact of the Azusa Street Revival, ISBN 978-0-446-57813-4 August, 2006 ed. , Warner Faith. Negrito nosso.

⁴ O livro foi publicado pela Editora Ecclesiae, e pode ser comprado em nossa loja: https://tdcsorocaba.com.br/produto/sons-de-milagres-diacono-eddie-ensley/

⁵ [Negrito nosso] ENSLEY, E. A Era dos Santos Padres da Igreja. In: ENSLEY, E. Sons de milagres. Campinas: Ecclesiae, 2017.

⁶ [Negrito nosso] ALDUNATE, C. Carismas, ciência e espíritos. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

⁷ SUENENS CARDEAL, L.J. O repouso no Espírito. São Paulo: Paulus, 1991.

⁸ MERECKI, J. Corpo e transcendência: A antropologia filosófica na Teologia do Corpo de São João Paulo II. Tradução de Dom Hugo Cavalcante e Pe. Valdir Manuel dos Santos Filho. Brasília: Edições CNBB, 2014.

⁹PAULO II, S.J. Teologia do Corpo: O Amor Humano no Plano Divino. São Paulo: Ecclesiae, 2019. Catequese 19.

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