Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum – Ano B
A liturgia deste 23º Domingo do Tempo Comum trata de um tema muito delicado e, em tempos marcados pela polarização, muito difícil de ser tratado com a seriedade que merece. Apesar de complexo e de despertar muitas discussões acaloradas, é um tema que não pode ser negligenciado pelos cristãos, pois se trata de um tema central na pregação de Cristo. A liturgia de hoje nos fala da pobreza.
A pobreza é um problema que assola a humanidade desde a suas origens e ao longo dos séculos muitos sistemas buscaram dar respostas, soluções, apontar caminhos para uma sociedade mais justa e mais fraterna.
Alguns achavam que o problema da pobreza seria resolvido através de um sistema político e econômico. Neste sentido surgiram sistemas que prometiam solucionar o problema e criar, por assim dizer, o paraíso na Terra.
Um desses sistemas políticos é o comunismo. Resumidamente, o comunismo surgiu como uma resposta às desigualdades sociais e econômicas decorrentes da Revolução Industrial, que ampliou a diferença entre ricos e pobres. O filósofo alemão Karl Marx foi um dos precursores do comunismo e, juntamente com Friedrich Engels, escreveu o “Manifesto do Partido Comunista”.
Nele, os autores apresentam a ideia de que a sociedade é dividida em classes sociais opostas, a burguesia (ricos) e o proletariado (pobres), e que a luta de classes é inerente à sociedade capitalista. Então, na visão Marx e de seus discípulos, o problema da pobreza seria resolvido com a distribuição das riquezas e com o controle do Estado sobre os bens e os meios de produção.
Porém logo esse sistema se mostrou inválido. Os locais que tentaram seguir por esse caminho logo caíram no autoritarismo e na repressão violenta. E o sistema que prometia acabar com a desigualdade acabou afundando a população na miséria. Além disso, o comunismo, ao defender o materialismo histórico, também quer tirar do ser humano a abertura ao transcendente, ou seja, nessa visão de mundo não existe Deus e religião.
Do lado totalmente oposto ao comunismo, surgiu um outro sistema que também prometia solucionar o problema da pobreza, mas através de um outro caminho. Estamos falando aqui do liberalismo, que a partir do século XX passa a ter uma outra face, ainda mais profunda, chamada de neoliberalismo.
De uma maneira geral o liberalismo é uma corrente política e econômica que defende a liberdade individual e o livre mercado como solução para os problemas sociais e econômicos. Os defensores do liberalismo argumentam que a liberdade de escolha e a competição no mercado são capazes de gerar riqueza e reduzir a pobreza.
Para os liberais, o Estado deve ter um papel mínimo na economia, limitando-se a garantir a propriedade privada e a livre concorrência. Para os liberais, a pobreza é resultado de uma série de fatores, como falta de oportunidades, baixa produtividade e excesso de regulamentação estatal. A solução para esse problema, portanto, seria promover um ambiente econômico mais favorável ao empreendedorismo e à criação de riqueza.
Mas é importante reconhecer que esse modelo também tem suas limitações. Uma das principais críticas é que ele pode levar à concentração de poder econômico nas mãos de poucos agentes, o que pode perpetuar as desigualdades socioeconômicas.
Além disso, em um mercado livre nem sempre há incentivos para se investir em áreas que não são lucrativas no curto prazo, como a preservação do meio ambiente ou a redução da pobreza em regiões mais pobres.
O próprio Papa Francisco tem alertado para as consequências do consumismo desenfreado incentivado pela teoria neoliberal, como a cultura do descarte (que ultrapassa os limites econômicos causando reflexos na convivência social), a exploração dos recursos naturais e o consequente descuido com a casa comum. Portanto, fica claro que também o neoliberalismo não consegue solucionar a questão.
Na liturgia de hoje fica claro que Jesus fez uma escolha preferencial pelos pobres e, como podemos perceber, há no mundo outras forças que também afirmam que escolhem os pobres, tornou-se necessário definir bem em que consiste a escolha dos pobres feita por Jesus e em que se distingue de qualquer outra.
A escolha de Jesus é uma escolha primeiramente religiosa. As outras são uma escolha política. Jesus ama e prefere os pobres, os que sofrem, os marginalizados: mas por que o faz? Não porque odeia o rico, mas porque, no fundo desta opção preferencial pelos pobres está o desígnio de Deus de salvar a fraqueza com a fraqueza, invertendo a lógica humana do mais forte que é uma lógica impiedosa e desumanizante.
Mas é necessário entender bem, no evangelho não se trata de recompensar a pobreza com um prêmio ultraterreno: uma espécie de prêmio de consolação para compensar aquilo que não se consegue dar-lhes neste mundo; trata-se simplesmente da condição mais favorável que desfruta o pobre para conhecer a Deus e escolher os verdadeiros valores que formam o Reino de Deus.
Tanto mais que aquele prêmio não está destinado exclusivamente ao pobre; a história do rico e Lázaro, por exemplo, mostra que é difícil ao rico conquistá-lo, não que lhe seja impossível. Basta que os ricos também entrem na categoria dos “pobres de espírito”, isto é, daqueles que escolheram tornar-se pobres, ou ao menos ajudar os pobres.
Teria bastado que o rico tivesse agido de outra forma para com o pobre Lázaro que jazia à sua porta, que tivesse usado de modo diferente suas riquezas, em vez de se banquetear a cada dia esplendidamente e vestir-se de púrpura e linho fino (cf. Lc, 16,19).
Neste sentido, portanto, Deus escolheu os pobres. O que significa para nós essa escolha de Deus manifestada em Jesus Cristo? Duas coisas: primeiro, que nós seremos escolhidos por Deus se tivermos parte dos pobres, no sentido que o evangelho dá a esta palavra; segundo, que de nossa parte também nós devemos escolher, como Deus, os pobres.
Mas esta escolha tem que traduzir-se em ato pela participação de cada membro da Igreja. Hoje se fala muito da opção pelos pobres; em geral, com isso se entende incentivar a Igreja institucional a se colocar ao lado dos operários, a defender os direitos dos oprimidos, a denunciar os desmandos do poder político e econômico em relação a eles.
É certamente também uma forma evangélica de se preocupar com os pobres, desde que não seja inspirada por sectarismo político e tenha em vista de verdade a libertação dos pobres e não sua manipulação. Mas sozinha é insuficiente, aliás, não é nada. Porque ela pode se tornar um pretexto que mostra somente o que os outros (as estruturas e as instituições) deveriam fazer e não aquilo que nós deveríamos e poderíamos fazer desde já.
São Tiago em sua carta nos aponta com força esta concretude na escolha dos pobres. Imagina um caso muito realista: numa assembleia litúrgica entra um rico luxuosamente vestido e, junto com ele, um pobre com roupas sujas. Ao primeiro se oferece um lugar de destaque, enquanto o segundo é convidado a se sentar abaixo do estrado. A observação de Tiago questiona nossas assembleias. Será que na nossa Igreja somos todos iguais em dignidade?
Falta-nos vivificar esta igualdade, ou melhor, rompê-la; mas rompê-la desta vez em favor dos pobres, dos idosos, dos que sofrem; os humildes devem ser entre nós os preferidos, as pupilas, o objeto de nossa atenção e nosso respeito.
O que São Tiago diz tem, naturalmente, infinitas aplicações na vida de cada dia. Procuremos descobri-las e acharemos muitos motivos para nos envergonhar. É tão fácil e natural escolher os ricos e os poderosos, dirigir a própria atenção às pessoas de destaque e simpáticas, enquanto é tão raro dar uma verdadeira atenção aos pobres e respeitar sua dignidade.
O próprio Jesus nos questiona sobre isso em Lc 6,34: “Se emprestais aqueles de quem esperais receber, que recompensa mereceis? Se convidais aquele que pode, por sua vez, convidar-vos também, que mérito tereis?”. Vamos aprender com os pobres. Vamos defender os pobres. Mas acima de tudo, vamos amar os pobres, pois amando-os estaremos amando ao próprio Cristo!
Padre Julian Camargo é presbítero da Arquidiocese de Sorocaba. Ordenado em 06/11/2022, atualmente atua como vigário na Catedral Metropolitana de Nossa Senhora da Ponte.